A história dos pombos da Madeira, Açores e Canárias mostra como a atitude dos governos pode salvar ou condenar uma ave.

 

Dos romances às telenovelas, é um enredo tão comum que já se tornou um cliché: irmãos separados à nascença, um crescendo amado e protegido, enquanto o outro vive situações de negligência e abuso. A situação dos pombos da Macaronésia faz lembrar estas histórias – mas está ainda longe do habitual final feliz.

 

São quatro os pombos desta história: duas espécies nas Canárias (pombo-rabil, Columba junoniae, e pombo-turquesa, Columba bollii), uma na Madeira (pombo-da-madeira ou pombo-trocaz, Columba trocaz) e uma subespécie nos Açores (pombo-torcaz-dos-açores, Columba palumbus azorica). Todos são facilmente reconhecíveis como pombos, embora maiores do que o pombo-doméstico, e todos vivem na floresta Laurissilva – e desempenham um papel importante na manutenção das florestas nativas das ilhas atlânticas.

 

O pombo-rabil identifica-se pela plumagem cinzento-acastanhada, com um brilho púrpura e reflexos metalizados na cabeça e pescoço, e pela banda clara na ponta da cauda. Já o pombo-turquesa, que com ele partilha as ilhas de La Palma, La Gomera, Tenerife e El Hierro, tem uma banda cinzenta na cauda, e a cor escura das suas penas de voo contrasta com o corpo azul-acinzentado, com uma mancha cor-de-vinho e verde-metálica de cada lado do pescoço.  Este último está altamente dependente da floresta Laurissilva: é nela que vive, se alimenta e faz o ninho. Essa dependência torna-o vulnerável a alterações, degradação ou destruição deste habitat – ameaças que podem rapidamente pôr a espécie em perigo, já que ela não existe em mais nenhum local do mundo. Reconhecendo esse risco, e apesar de a espécie ser considerada Quase Ameaçada (o 2º grau mais baixo na “escala” de ameaça internacional) em Espanha, as autoridades espanholas incluem o pombo-turquesa na sua lista de espécies em regime de proteção especial.

 

Pombo-rabil (1ª e 2ª fotos) e pombo-turquesa (3ª foto)

Aurelio Martín
Thibaud Aronson (CC BY-SA 4.0)
Vicente Quilis

Para o pombo-rabil, a destruição de habitat já obrigou a uma mudança de casa. Antes de os humanos colonizarem estas ilhas, a espécie habitava os bosques de baixa altitude. Perante a expansão humana – e a consequente destruição desses bosques – o pombo-rabil viu-se forçado a procurar refúgio noutros lados: na Laurissilva, nos chamados bosques de monteverde, em bosques mais secos, e especialmente em barrancos e ladeiras escarpadas com vegetação mais adaptada a climas quentes. Ao mesmo tempo, esta espécie viu surgir uma outra ameaça: os ratos e gatos trazidos (intencionalmente ou não) pelos humanos, e que comem ovos e crias de pombo – uma ameaça a que o pombo-rabil está particularmente suscetível, pois faz o ninho no solo. Segundo a Sociedade Espanhola de Ornitologia (SEO/BirdLife), estudos em Tenerife demonstraram que a predação pode levar à perda de quase 75% das ninhadas desta espécie. Dadas estas ameaças, e o facto de ser também uma espécie endémica (i.e. que só existe neste arquipélago), o pombo-rabil está classificado como Vulnerável em Espanha.

 

Para proteger os seus pombos, o governo das Canárias tem vindo a desenvolver, desde 1993 e em parceria com a SEO/BirdLife e outras entidades, ações para combater a caça ilegal, restaurar os seus habitats, e procurar alternativas viáveis à exploração das florestas nativas. Como parte dos esforços de conservação da espécie, o pombo-rabil foi, inclusive, reintroduzido com sucesso na ilha de Gran Canaria, onde estava extinto.

 

Já os pombos portugueses não têm tido a mesma sorte. O pombo-da-madeira, identificável pelo seu grande porte e pela mancha cinzento-prateada no pescoço, tem sido alvo de abate autorizado pelo Governo da Regional da Madeira nos últimos anos. À semelhança das espécies das Canárias, o pombo-da-madeira alimenta-se de bagas das plantas da Laurissilva. De facto, pombo e floresta evoluíram juntos ao longo de milénios, criando uma dependência mútua: os pombos dependem da Laurissilva para alimento (e para fazer o ninho) e as plantas dependem do pombo para dispersar as suas sementes. Mas à medida que os seres humanos se expandiram floresta adentro, em vez das habituais bagas o pombo-da-madeira começou a encontrar — e a comer — rebentos de vinha, couves e outras folhas. Gerou-se assim um conflito entre os pombos e os donos das pequenas hortas. Para muitos, as hortas junto à Laurissilva são uma importante fonte de alimento para as suas famílias, e os danos causados pelos pombos podem ter um impacto negativo. No entanto, essas perdas podem ser minimizadas, recorrendo a canhões sonoros e fitas holográficas que afugentam os pombos, a redes que os impedem de chegar às plantas, ou trocando o local das plantações (plantando junto à Laurissilva espécies sem interesse para o pombo, e plantando as couves, por exemplo, a altitudes mais baixas que o pombo não frequenta). A solução pode também passar por indemnizar os agricultores prejudicados.

 

pombo-da-madeira

Pombo-da-madeira

Erik Wahlgren

 

Contudo, em vez de incentivar estas soluções, o governo da Madeira optou por encarnar o papel de vilão, emitindo autorizações para o abate de uma espécie que não existe em mais nenhum local do mundo, e que nos anos 80 estava ameaçada de extinção. “Já para não falar da incongruência de pedir à Comissão Europeia milhões de euros para proteger a Laurissilva, património da Unesco, e depois abater uma das aves de que esta floresta depende para germinar”, comenta Cátia Gouveia, coordenadora da SPEA Madeira. E para tornar a história ainda mais triste, não há provas de que o abate funcione efetivamente para reduzir os danos às culturas. Apesar disso, nos Açores há quem gostasse de fazer o mesmo.

 

pombo-torcaz-dos-açores

O pombo-torcaz-dos-açores viu a Laurissilva subsituída por espécies exóticas como esta Criptomeria japonica, usada para produção de madeira.

Ana Mendonça / SPEA

 

 

Vozes de entre a comunidade de caçadores têm vindo a pressionar para que também neste arquipélago seja autorizado o abate de pombos, neste caso do pombo-torcaz-dos-açores, argumentando que a ave causa danos aos cultivos. Em São Miguel, alegam uma situação semelhante à da Madeira, com os supostos danos a incidirem sobre hortas de subsistência, “mas está longe de estar demonstrado o real impacto”, diz Rui Botelho, coordenador da SPEA Açores, relembrando que, a existir, os danos podem ser minimizados com recurso aos canhões sonoros, redes, fitas e outros métodos não-letais. No Pico e na Terceira — as regiões vinícolas do arquipélago com Denominação de Origem Protegida — o argumento de quem quer caçar pombos são os danos às vinhas. No entanto, um estudo do CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, realizado, a pedido do governo regional, concluiu que não eram os pombos a comer as uvas, mas sim outras espécies.

 

“Até à data, o governo tem negado estes pedidos, e as entidades públicas parecem bastante consciencializadas para a importância do pombo-torcaz-dos-açores”, frisa Rui Botelho. Ele e a equipa SPEA Açores trabalham para que essa consciência se mantenha firme face aos interesses, enquanto Cátia Gouveia e a equipa SPEA Madeira continuam a bater-se por uma mudança de atitude, para que os pombos portugueses possam deixar de ser os parentes pobres, e que a história possa ter um final feliz para todos os pombos da Macaronésia.

 

 

Este artigo foi publicado na nossa revista Pardela nº 66 (Primavera/Verão 2023).