Estar ativo de noite pode permitir evitar predadores ou competidores, portanto talvez não seja surpreendente que muitos animais tenham evoluído para tirar partido desse horário vantajoso. Mas a vida depois do sol-posto traz os seus próprios desafios, que vários grupos de animais superam com adaptações que vão do óbvio ao obscuro.

 

O desafio mais óbvio para os animais noturnos é, claro, o de ver no escuro. Aves noturnas como mochos, corujas e noitibós têm olhos que evoluíram para captar o máximo de luz possível. Os olhos destas aves são grandes – no caso das corujas e mochos, o enorme tamanho dos olhos, juntamente com o seu formato,  mais achatado que o globo ocular humano, impedem-nos de virar; têm de girar a cabeça quase toda, o que levou a que o seu pescoço se tornasse extremamente flexível, para poder rodar cerca de 270०. Ao nível celular, a sua retina tem uma maior concentração de bastonetes, as células especializadas em captar a luz. E, atrás da retina, têm uma camada refletora chamada tapete lúcido, que reflete a luz de volta ao olho para tirar o máximo partido de cada fotão que lhes chega.

 

Também muitos mamíferos de hábitos noturnos têm estas adaptações – o tapete lúcido é o que faz com que os olhos dos gatos, por exemplo, pareçam brilhar na escuridão. Além disso, nos bastonetes dos mamíferos noturnos o ADN está organizado de forma a funcionar como uma micro-lente que foca ainda mais a luz. Já as rãs e sapos têm, nos seus olhos, dois tipos diferentes de bastonetes, que lhes permitem ter visão a cores mesmo na escuridão total, quando nós humanos não conseguimos ver absolutamente nada.

 

coruja a virar a cabeça de forma extrema Jevgeni Fil on Unsplash

Também os insetos que estão mais ativos à noite têm uma excelente visão noturna, graças a adaptações não só dos olhos mas também do sistema nervoso, na forma como consegue integrar e processar a informação visual. Muitos destes insetos, em particular as traças e borboletas noturnas, são particularmente sensíveis à radiação ultravioleta, o que lhes permite detetar as flores de que se alimentam – muitas delas têm padrões ultravioleta, invisíveis aos nossos olhos mas facilmente detetados pelos insetos de que dependem para a polinização.

 

A importância do olfato

Outra forma de as traças e borboletas noturnas encontrarem as flores de que se alimentam é detetando o dióxido de carbono que as plantas emitem. A capacidade de detetar moléculas dispersas pelo ar é, aliás, extremamente importante para estes insetos que estão ativos durante as horas de escuridão, pois permite-lhes comunicar entre si. As borboletas noturnas, por exemplo, têm geralmente as antenas (o órgão que usam para detetar esses odores) mais desenvolvidas do que as borboletas diurnas, com os machos a apresentarem antenas especialmente vistosas, maiores e mais “peludas”, para detetarem as feromonas produzidas pelas fêmeas.

 

Em aves marinhas como as cagarras, que estão também ativas durante o dia, as adaptações à vida noturna são menos extremas. Assim, embora os seus olhos sejam mais sensíveis à luz, com uma lente maior que ajuda à visão noturna (e as torna sensíveis à poluição luminosa), para encontrar o seu ninho à noite recorrem a outro sentido: o olfato. Numa experiência realizada na Selvagem Grande, no arquipélago da Madeira, cientistas demonstraram que cagarras às quais foi temporariamente bloqueado o olfacto não conseguiam regressar à colónia de nidificação durante a noite, tendo de esperar pelo dia para poderem usar pistas visuais para se orientar.

cagarra poisada, em que se vêem bem as narinas Tânia Pipa/SPEA

Ouvir e não ser ouvido

Outro sentido que os animais noturnos frequentemente têm bem desenvolvido é a audição. A típica cara arredondada de muitas corujas e mochos tem um rebordo de penas fininhas que funciona como uma parabólica, encaminhando as ondas de som para os ouvidos da ave, localizados na margem interior desse rebordo. Estas aves têm ainda um ouvido mais acima que o outro, o que lhes permite triangular com grande precisão a origem do som – essencial para capturar presas esquivas no escuro ou até debaixo da neve.

 

Já os morcegos são famosos por usar ativamente o som para penetrar a escuridão. Como o sonar de um barco, usam a ecolocalização, emitindo estalidos e guinchos e detetando os seus ecos para construir um mapa mental do que os rodeia. Estudos recentes mostram que, tal como nós conseguimos identificar a voz de familiares e amigos, os morcegos conseguem distinguir outros indivíduos da sua espécie, só pelas assinaturas dos seus chamamentos de ecolocalização. Esta capacidade de “ver” através do som permite a muitas espécies de morcegos alimentar-se de um recurso que os predadores diurnos não exploram: os insetos noturnos.

morcego P.madeirensis em voo, à noite Luís Berimbau

Ao longo dos tempos, esses insetos foram também evoluindo, apresentando características e estratégias para escapar ao “sonar” dos morcegos. Esta corrida evolutiva é particularmente notória nas traças, muitas das quais desenvolveram ouvidos sensíveis aos chamamentos de ecolocalização dos morcegos. Assim, conseguem detetar morcegos que se aproximem, e fugir ou esconder-se na vegetação. Algumas espécies de traça produzem elas próprias sons de alta frequência, que alertam os morcegos de que são tóxicas: os morcegos ouvem os sons e aprendem a associá-los a um mau gosto, parando de caçar aquela espécie. Outras espécies de traça foram ainda mais longe, produzindo sons que interferem com a orientação dos morcegos: os seus sons sobrepõem-se aos estalidos dos predadores, confundindo-os e dificultando-lhes a tarefa de encontrar a presa.

 

Mas algumas espécies de traça não têm ouvidos, portanto não conseguem ouvir os morcegos para tomar medidas evasivas. Para estas traças, a solução passou por modificar o seu próprio corpo. Nalgumas espécies, as minúsculas escamas que cobrem as asas e corpo das traças evoluíram de forma a absorver as ondas sonoras emitidas pelos morcegos, tornando-as invisíveis ao “sonar” destes predadores. Outras espécies de traças sem ouvidos desenvolveram estruturas retorcidas na ponta das asas, que refletem muito bem o som em muitos ângulos diferentes, tornando-se um chamariz para os morcegos. Estudos mostram que os morcegos têm tendência a atacar estas estruturas, deixando intactas as partes sensíveis do corpo da traça, que assim sobrevive mais uma noite.

traça com estruturas longas e retorcidas na cauda, para enganar os morcegos Frank Vassen (CC-BY 2.0)

Esta corrida evolutiva entre morcegos e traças é a prova viva de que o segredo para sobreviver à noite está tanto em ouvir como em não ser ouvido. Mochos, corujas e noitibós têm um voo silencioso, graças às franjas nas penas das suas asas, que alteram a turbulência do ar, absorvendo o ruído que seria causado pelo bater das asas, e permitindo-lhes assim aproximar-se silenciosamente das suas presas.

 

Pelo menos uma espécie de aranha, a aranha-tarrafeira (ou aranha-cara-de-ogro, Deinopis spinosa), usa o som para detetar tanto predadores como presas, apesar de não ter ouvidos. Quando os pelos nas suas patas, que são sensíveis às vibrações, detetam o som de moscas, mosquitos ou traças a voar por perto, a aranha apanha-as com uma “rede” de teia estendida entre as 4 patas dianteiras. Se esses mesmos pelos detetarem sons de alta frequência, a aranha fica imóvel – talvez por os associar ao canto de aves que podem comê-la, dizem os cientistas.

 

Também em muitos mamíferos noturnos, desde felinos a roedores, um conjunto de pelos especializados é um auxílio especialmente importante na escuridão: os bigodes ajudam-nos a encontrar alimento e a evitar obstáculos. Um estudo de 2020 indica que as penas semelhantes a bigodes que os noitibós têm em redor do bico podem ter também essas funções.

 

Quente e frio

Caçar insetos noturnos permite aos morcegos recorrer a uma fonte de alimento para a qual têm poucos competidores, mas quando as temperaturas começam a descer, esta estratégia traz um desafio: no inverno, os insetos noturnos são escassos. Para sobreviver a esse período de escassez alimentar, e evitar gastar imensa energia passando noites a voar em busca de presas quase inexistentes, os morcegos hibernam. Durante a hibernação, reduzem os gastos energéticos ao mínimo, baixando a sua temperatura corporal e reduzindo o batimento cardíaco a 4 pulsações por minuto. Para além de migrarem para latitudes mais quentes no inverno, também alguns noitibós entram num estado de dormência, baixando a sua temperatura corporal quando as noites são particularmente frias ou há pouco alimento disponível.

 

Mas para outros seres noturnos, a temperatura fornece outra forma de “ver” na escuridão. Vários grupos de cobras conseguem detetar o calor emitido pelo corpo das suas presas, sob a forma de radiação infravermelha. E, à semelhança das traças que enganam os morcegos, também algumas presas usam estratégias para ludibriar este sexto sentido das cobras: os esquilos-terrestres-da-califórnia (Spermophilus beecheyi) usam um truque semelhante nas cascavéis: aumentam o fluxo de sangue para a cauda, para esta ficar à mesma temperatura que o resto do corpo, e agitam-na veementemente. Assim, para a cobra parecem ter o dobro do tamanho e dar luta.

 

Perigos distintos

Os animais que se tornaram senhores da noite são afetados por fatores que não influenciam diretamente as espécies diurnas. É o caso das fases da lua e, no último século, da poluição luminosa. No nosso projeto LIFE Natura@night, estamos a estudar a vida noturna de insetos, aves marinhas e morcegos, e a forma como é afetada pela poluição luminosa nos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias.