A luz elétrica é tida por muitos como uma das invenções que mais revolucionou a sociedade. Permitiu-nos conquistar a noite, aumentando o número de horas em que podemos estar ativos, tanto para trabalho como para diversão. Mas este engenho brilhante trouxe-nos também riscos de saúde, e está a pôr em risco espécies e ecossistemas naturais, mesmo longe das grandes cidades.

 

No meio do Atlântico, nas ilhas e ilhéus da Madeira e dos Açores, aves marinhas como a cagarra (ou cagarro, Calonectris borealis) vêm a terra nas noites de verão, para se reproduzirem. Existem indícios de que estas aves adultas tendem a afastar-se de zonas iluminadas, o que pode significar que, em colónias de nidificação com muita poluição luminosa, os adultos poderão ter de percorrer uma rota maior para irem ao ninho alimentar a cria, pondo em perigo a próxima geração da espécie. Para avaliar esse possível impacto da poluição luminosa nas cagarras adultas, os técnicos da SPEA Açores colaboraram este verão num estudo pioneiro, em que a ilha do Corvo apagou a sua iluminação pública dia sim, dia não, nas horas mais críticas para estas aves.

 

A atração da luz

Uns meses mais tarde, as luzes artificiais voltam a ter um impacto direto e notório nas aves marinhas juvenis. No outono, os juvenis saem dos ninhos e fazem-se ao mar, onde passarão a maior parte das suas vidas. No escuro da noite, emergem das tocas em que nasceram e procuram o brilho do mar no horizonte. Mas infelizmente, hoje em dia, os reflexos do mar não são o único brilho no Atlântico – nem o mais evidente. As luzes das nossas vilas e cidades iluminam os céus, e estes juvenis pouco experientes são atraídos para zonas humanizadas. Estas aves de hábitos noturnos têm olhos sensíveis à luz, por isso ficam muitas vezes encandeadas pela intensidade das luzes artificiais, acabando por chocar com edifícios, linhas elétricas e veículos. Algumas acabam por cair ao chão, podendo mesmo morrer devido aos ferimentos ou à incapacidade de voar.

 

 

brilho das luzes artificiais na Madeira, visto do mar, ofuscando as estrelas Neide Paixão

Para ajudar estas aves, brigadas de voluntários das campanhas SOS Cagarro nos Açores, e Salve uma Ave Marinha na Madeira, percorrem as ilhas, recolhendo as aves desorientadas e libertando-as junto ao mar. Além da organização de algumas destas brigadas, a SPEA tem também vindo a trabalhar com os municípios para promover apagões durante os períodos mais críticos para as aves. Estas ações pontuais são importantes, mas a poluição luminosa é um problema que tem de ser combatido a longo prazo, pois tem impactes que vão muito para além das aves marinhas.

 

As tartarugas marinhas, por exemplo, sofrem do mesmo problema que as cagarras: quando as tartarugas bebés eclodem, confundem a iluminação artificial com o brilho do mar, acabando perdidas. Muitas aves migradoras, como os tordos e as toutinegras voam durante a noite, orientando-se pelas estrelas. As luzes artificiais podem fazê-las perder o rumo, atraindo-as para as cidades, onde milhares morrem todos os anos, no mundo inteiro, por colidirem com edifícios. Mesmo as que escapam a essa sorte despendem muita energia perdidas nos ambientes urbanos, ficando cansadas e vulneráveis a predadores como gatos.

 

Também muitos insetos noturnos são atraídos pelas luzes, com repercussões que ecoam pelo ecossistema. Os morcegos, por exemplo, estão adaptados a caçar à noite, e evitam zonas iluminadas. Quando os insetos de que se alimentam são atraídos pela poluição luminosa, os morcegos ficam sem alimento. Por outro lado, quando são colocadas fontes de luz artificial junto dos seus dormitórios, esse “dia contínuo” pode fazer com que deixem de sair para se alimentar, acabando por morrer à fome.

 

morcego P.madeirensis em voo, à noite Luís Berimbau

Ritmos perigosos

Na verdade, a poluição luminosa afeta os ritmos de vida e comportamento de muitas espécies, incluindo o ser humano. 99% dos habitantes da Europa e dos EUA vivem sob céus noturnos mais brilhantes do que seriam naturalmente. Esta exposição contínua à luz afeta processos vitais como a produção da hormona melatonina: maior luminosidade à noite reduz a produção de melatonina, levando a problemas como privação de sono, fadiga, dores de cabeça, stress e ansiedade. Existem também indícios de que a redução na produção de melatonina devido à maior exposição à luz pode aumentar o risco de cancros com uma ligação hormonal, como o cancro da mama e o cancro da próstata.

 

A luz artificial altera não só os ritmos de vida humanos, mas também de outras espécies. Um estudo na Alemanha revelou que, por causa da luz artificial e do barulho do trânsito, os melros nas cidades acordam e começam a cantar até 5 horas mais cedo do que os de zonas rurais.

 

Um problema omnipresente

O impacto da poluição luminosa sente-se até debaixo de água. Estudos com perca-europeia demonstraram que até pequenas intensidades luminosas interrompem a produção de melatonina nestes peixes. E quando cientistas colocaram painéis luminosos debaixo de água, junto à costa do país de Gales, constataram que menos animais filtradores colonizavam esses locais, o que poderá indicar que as luzes de plataformas petrolíferas, navios e portos podem estar a alterar os ecossistemas marinhos.

 

Muitos conservacionistas e investigadores consideram a poluição luminosa uma das formas de poluição em mais rápido crescimento e mais largamente espalhada pelo mundo. O Atlas Mundial do Brilho do Céu Noturno (World Atlas of Night Sky Brightness), um mapa gerado por computador em 2016, a partir de milhares de imagens de satélite, demonstra-o: apenas as zonas mais remotas do planeta (Sibéria, Sahara, Amazónia) permanecem em escuridão total. Em zonas urbanas e industrializadas, o problema é exacerbado pela poluição atmosférica: as partículas de poluentes no ar refletem e difundem a luz, aumentando ainda mais o brilho do céu envolvente.

 

As luzes das cidades não só impedem cagarras, toutinegras e tartarugas de encontrarem o seu caminho, mas também nos impedem a nós, humanos, de desfrutar do céu noturno. Em 1994, quando um terramoto cortou a eletricidade em Los Angeles, muitos habitantes da cidade contactaram os centros de emergência, preocupados com uma “nuvem prateada gigante” no céu noturno. Era a Via Láctea, que há anos estava encoberta pelo brilho urbano.

 

Há soluções

Não é realista pensar que vamos abandonar esta invenção que alterou tão profundamente os nossos hábitos e se tornou uma constante das nossas vidas,  mas podemos fazer alterações para minimizar riscos para a nossa saúde e permitir que as noites continuem a ter vida natural. Nem todas as zonas poderão vir a ser Reservas Dark Sky (em Portugal temos duas), mas edifícios empresariais e públicos, hotéis, campos de futebol e monumentos podem desligar o máximo de luzes durante a noite, para minimizar a iluminação desnecessária. Podemos fechar os estores ou persianas, assegurar que os candeeiros de rua e outras fontes de iluminação apontam a luz apenas para onde é necessária, para evitar dispersar luz. Podemos trocar a luz azul ou branca (mais nociva) por luz de tons mais quentes.

E, é claro, sempre que possível podemos desligar a luz.  É uma excelente oportunidade de reduzir o consumo de energia, de que tanto se fala atualmente, conciliando com uma melhoria de vida para a biodiversidade e para nós. Pelo menos nalgumas circunstâncias, talvez esteja na hora de abraçarmos a escuridão.

 

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