O aumento da consciencialização e dos esforços de conservação de algumas espécies tem levado à criação de estratégias inovadoras de atuação. No terreno, as redes de custódia são um bom exemplo, com implementações de sucesso registadas na Península Ibérica e não só. A Xarxa per a la Conservació de la Natura, entidade catalã de utilidade pública, tem desenvolvido um trabalho pioneiro nesta abordagem que assenta na ligação com proprietários de terrenos privados, sobre o qual fomos saber mais, com Sandra Carrera e Anabel Cepas, respetivamente diretora e coordenadora de projetos na organização.

 

O que são e como funcionam as redes de custódia?

As redes de custódia correspondem a uma estratégia que envolve proprietários e utilizadores (agricultores, silvicultores, pastores, caçadores, pescadores, recreacionistas passivos) na conservação da natureza e da paisagem, com o apoio de um conjunto alargado de grupos da sociedade civil. Visam manter e restaurar a integridade ecológica e os valores da paisagem, natureza e biodiversidade, através de acordos voluntários entre proprietários/utilizadores e organizações de gestão das terras.

 

O trabalho no terreno tem por base uma série de ferramentas com vista à conservação dos valores paisagísticos e culturais de áreas privadas que por razões económicas ou políticas não estão sob proteção estrita, ou onde o objetivo é manter usos da terra que sejam benéficos para a natureza. Geralmente, estes métodos focam-se em incentivar os proprietários de terras e utilizadores a gerirem áreas para proteger ou aprimorar esses valores, ou permitir que outros giram a biodiversidade e herança natural.

 

Em que medida são as redes de custódia diferentes das formas mais “tradicionais” de fazer a conservação da natureza?

A abordagem de custódia – que encoraja a responsabilidade individual e comunitária pelo uso sustentável dos recursos naturais – oferece um meio de estender as práticas de conservação além dos limites das áreas protegidas convencionais.

 

A custódia é um conceito especialmente útil nos muitos casos em que o objetivo é a gestão sustentável – em vez de proteção ou preservação absoluta – dos recursos naturais. Embora as ferramentas de custódia possam ser empregues para impedir o uso de áreas específicas, elas são mais frequentemente usadas para restringir certos usos (por exemplo, práticas agrícolas, florestais ou de caça intensivas) ou para manter ou restaurar outros (por exemplo, agricultura extensiva, uso de terras ecologicamente sensíveis).

 

Uma abordagem de custódia é frequentemente implementada onde uma abordagem de preservação da natureza pode não ser adequada. À medida que as técnicas são introduzidas a uma gama mais ampla de atores e adaptadas para usos em novas regiões, a custódia pode oferecer novas maneiras de atingir os objetivos de conservação dentro e fora das áreas protegidas. É um complemento, não um substituto para essas outras abordagens.

 

Na Europa, a custódia pode tornar-se uma estratégia de gestão moderna e sólida de terras rurais de propriedade privada e local, relacionada com práticas agrícolas e florestais sustentáveis ​​e ecológicas, com elementos de restauro e manutenção de habitats através de práticas inovadoras ou tradicionais.

 

 

Que vantagens destacam na aplicação desta abordagem?

Os contratos e acordos de custódia têm prazos flexíveis e podem ser adaptados a cada caso, sem que impliquem um ónus legal para o proprietário. No cenário de mudanças climáticas, a flexibilidade no cronograma de acordos e contratos de custódia pode ser uma vantagem para se adaptar às novas condições ambientais.

 

As oportunidades compartilhadas podem ser o ganho de visibilidade e reconhecimento público, a relação com redes de diversos atores ou a contribuição para a sustentabilidade a longo prazo de uma terra com valores ambientais.

 

Para as ONG’s, as redes de custódia contribuem para o estabelecimento de uma estrutura maior para atingir os objetivos de conservação de forma transparente e formalizada; promover a conservação ativa da natureza através de voluntários em novos espaços; envolver-se com projetos de investigação e financiamento para conservação da natureza nas propriedades sob tutela; expandir áreas naturais de alto valor sem compra de terras de maneira económica para as ONG’s conservacionistas.

 

Existem desafios associados à gestão das redes de custódia?

Sim, existem vários desafios, sendo um dos mais representativos a falta de um suporte económico estrutural para a custódia. Mesmo que na maioria dos países exista reconhecimento legal da custódia, falta uma abordagem abrangente em toda a UE. As diferenças entre os sistemas jurídicos em toda a Europa podem implicar que as estruturas aplicadas num país podem não ser completamente apropriadas para outro país. O ajuste exato dependerá do sistema legal de cada país. Muitas vezes as partes carecem de conhecimento jurídico para estabelecer um plano concreto sobre os compromissos de ambas e o procedimento em caso de rescisão antecipada do contrato. Existe também a necessidade de construir confiança com as partes envolvidas, o que pode ser demorado…

 

 

Podem partilhar algum caso de sucesso de implementação da abordagem?

Um exemplo claro de custódia bem sucedida é o caso das lagoas temporárias denominadas «la Gutina», dentro da propriedade de Mas Torres, na montanha Albera (Girona, Espanha).

 

Neste ecossistema tipicamente mediterrânico, há um total de quatro lagoas temporárias. Estas lagoas caracterizam-se por uma diversidade florística e faunística elevada, sendo que as suas particularidades e composição de espécies tornam-no num ecossistema frágil e ameaçado à escala da UE, que se enquadra na diretiva Habitats, na Rede Natura 2000 e inclui um sítio natural de importância comunitária.

 

Antes de 2015, haviam apenas duas lagoas temporárias na propriedade e grande parte do património natural e de espécies não estavam presentes nas lagoas. A terceira lagoa, chamada Prat dels Rosers foi drenada no século XX e, através de um canal de irrigação, escoou a água para as vinhas próximas da propriedade. Assim, a lagoa Prat dels Roses foi seca e passou por um processo de invasão de mato e arborização.

 

 

Como conseguiram passar dessa situação a um “final feliz” para a conservação?

A recuperação da lagoa Prat dels Rosers é uma história de sucesso para a organização de custódia IAEDEN (Institució Alt Empordanesa per a la Defensa i Estudi de la Natura). Em 2011, a IAEDEN assinou um contrato de gestão com a propriedade, uma produtora de vinho ecológico, com o objetivo de preservar as duas lagoas iniciais e os seus valores naturais. Após conversas com os proprietários, percebeu-se que existia uma terceira lagoa e, por isso, entre 2014 e 2015 foi iniciado um projeto de recuperação da terceira lagoa, com o apoio dos proprietários.

As ações realizadas consistiram em estudos hidrogeológicos para analisar e restaurar a lagoa, para evitar a drenagem para vinhedos próximos, nos quais também colaboraram voluntários. O projeto permitiu identificar uma quarta lagoa, na qual foram realizadas ações semelhantes.

 

O restauro destas duas lagoas aumentou a superfície de habitats raros e contribuiu para a viabilidade das metapopulações das lagoas. O estudo do banco de sementes e da composição florística permitiu determinar as espécies que estão associadas a estes habitats temporários. Assim, o projeto ofereceu uma solução vantajosa para os proprietários, pois a água drenada para os vinhedos próximos era um problema para a sua produção, e a IAEDEN conseguiu recuperar um habitat de interesse comunitário, com ações compatíveis com a produtividade da propriedade.

 

Rede de custódia pelas águias

No projeto LIFE LxAquila, estamos a aplicar a abordagem das redes de custódia em Portugal, mais concretamente na região da Área Metropolitana de Lisboa, aprendendo com a experiência da XCN e adaptando ao contexto local. Assim pretendemos criar uma rede composta por proprietários de terrenos privados e entidades públicas, que serão guardiões dos valores naturais da região, e em particular das águias-de-bonelli, para assim demonstrar que é possível compatibilizar a conservação de predadores com as atividades humanas.

 

Mais informação

Visita do projeto à XCN e a outros exemplos na Catalunha