O abutre-preto, a maior ave de rapina da Europa, é uma espécie muito suscetível a um vasto conjunto de ameaças. A perda de habitat, o envenenamento e a perseguição direta, entre outros fatores, motivaram a sua extinção (enquanto espécie reprodutora) em Portugal, na década de 1970. Passariam cerca de 40 anos para a espécie se voltar a estabelecer no país, com dois casais a reproduzirem-se com sucesso no Tejo Internacional, em 2010. Desde então, a espécie tem recuperado lentamente, e está atualmente presente em cinco colónias reprodutoras. Em 2024, registaram-se em Portugal mais de 108 casais, mas a espécie está ainda em risco, estando formalmente classificada como Em Perigo de extinção. O projeto LIFE Aegypius Return, com parceiros em Portugal e em Espanha, dedica-se à recuperação da espécie através de um conjunto alargado de medidas, nomeadamente a monitorização da mortalidade e o combate às ameaças.

 

Conhecer as ameaças e os fatores de mortalidade é fundamental para que se possa combatê-las e ser mais eficaz na conservação.

 

Mortalidade: uma realidade inevitável

Um abutre-preto em cativeiro (por exemplo, indivíduos irrecuperáveis que vivem em zoos) pode viver até cerca de 35 anos. Em estado selvagem, a longevidade reduz drasticamente para um máximo de aproximadamente 20 anos. No entanto, face às ameaças humanas, poucos serão os indivíduos que morrem de velhice. Dos 67 abutres-pretos marcados em Portugal, já morreram 11 (cerca de 16%) e apenas três comprovadamente por causas naturais. Focando apenas os dados do projeto LIFE Aegypius Return, morreram sete (ca. 17%) dos 41 abutres marcados. Estes números poderão ser superiores, uma vez que alguns emissores se desprendem ou deixam de emitir e, até a ave ser reencontrada – viva ou morta –, o seu estado fica desconhecido. Esta é a situação de 17 (ca. 25%) dos 67 abutres-pretos marcados.

 

Embora 16 -17% seja uma taxa de mortalidade algo impressionante, na verdade, e por comparação com outros projetos de conservação dirigidos ao abutre-preto, é um valor bastante positivo. Por exemplo, entre 2018 e 2024 foram libertados e marcados 83 abutres-pretos na Bulgária, dos quais 27 (ca. 45%) já morreram.

Apesar das ameaças serem comuns, a principal diferença é que, na Bulgária, todos os abutres-pretos foram ali reintroduzidos. Isto é, foram libertados abutres (a maior parte juvenis), na sua maioria provenientes de centros de recuperação de fauna da província da Extremadura, em Espanha, após reabilitação, e translocados para aquele país para reintrodução, onde foram libertados num habitat que não tinha, no início dos projetos, nenhum indivíduo conspecífico.

 

Em Portugal nunca houve nenhuma reintrodução de aves de outros países ou de cativeiro, e os abutres-pretos vivem em contacto próximo com a grande população espanhola, com muitas colónias bastante próximas da fronteira portuguesa.

 

Causas de morte

A translocação das aves para novos territórios poderá eventualmente refletir-se nas aptidões para ali viver: dos 67 abutres-pretos marcados em Portugal, apenas um (ca. 1.5%) morreu atacado por outros animais, enquanto na Bulgária cerca de 13% dos indivíduos morreram por predação, quase metade logo na primeira semana após a libertação. Esta predação deveu-se sobretudo a chacais-dourados (Canis aureus), abundantes naquele país.

 

A colisão e a eletrocussão em linhas elétricas, aerogeradores ou outras infraestruturas energéticas são também uma causa relevante para a mortalidade destas grandes aves planadoras. A morte de Freixo, uma cria nascida em 2023 no Douro Internacional, por fraturas múltiplas, ilustra claramente a incapacidade destas aves em detetar linhas elétricas mal sinalizadas, com as quais acabam por colidir violentamente. Alguns estudos alertam que este tipo de mortalidade poderá mesmo vir a ser a causa para a extinção local de algumas populações de abutres.

 

Por outro lado, o envenenamento mantém-se a ameaça mais importante por todo o mundo. Cerca de 8% dos abutres-pretos libertados na Bulgária morreram comprovadamente vítimas de venenos. Em Portugal, cinco casos suspeitos aguardam os resultados de análises toxicológicas. A deteção e instrução deste tipo de crime contra a vida selvagem é um processo complexo e moroso, que lamentavelmente se mantém sem as devidas consequências penais.

 

saco do programa Antídoto, usado para recolher abutre-preto envenenado

 

Investigar a morte de abutres

Nalguns casos as causas de mortalidade são mais fáceis de determinar do que noutros. Na investigação é fundamental o trabalho das autoridades, como o ICNF (Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas) ou o SEPNA/GNR (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da Guarda Nacional Republicana), que recolhem o cadáver e acionam todos os protocolos legais, e das equipas dos Centros de Recuperação para a Fauna, Centros de Necrópsia e Toxicologia.

 

Os cidadãos e as ONG (organizações não governamentais) de ambiente podem e devem colaborar ao denunciar todos os casos suspeitos de crime ambiental às autoridades e não interferir com as evidências.

 

 

O jovem 5J

Recolher o máximo de informação possível é fundamental para se estabelecer a causa de morte de um animal selvagem, já que alguns casos são muito difíceis de compreender. Veja-se o caso do jovem abutre-preto, macho, que recebeu a anilha 5J. Nasceu em 2024, na colónia do Tejo Internacional, e arriscou os primeiros voos no mês de agosto, com 121 dias de idade. Cerca de um mês depois (no período com ventos de leste bastante fortes, que agravaram os grandes incêndios que lavraram no centro e norte do país), partiu rumo ao distrito de Lisboa, e daí para o Parque Natural das Serras d’Aire e Candeeiros, onde dormiu. No dia seguinte voou até à Serra da Lousã, e ao terceiro dia rumou em direção a Penha de Águia, em Figueira de Castelo Rodrigo, onde morreu numa zona de matos, após evidenciar alguns comportamentos estranhos e erráticos. Estes longos voos em tão tenra idade chamaram a atenção dos técnicos LIFE Aegypius Return, que estavam a monitorizar atentamente, e de imediato se aperceberam do comportamento anómalo e da posterior imobilidade da ave. Os técnicos do parceiro ATN (Associação Transumância e Natureza) acorreram ao local e confirmaram a morte. Chamaram a GNR, também parceiro do projeto, que ativou o Protocolo Antídoto e o grupo de Intervenção Cinotécnica, pelo facto de a posição do cadáver indiciar sintomas de envenenamento. Não foram detetados venenos nem indícios visíveis de atividade criminosa no terreno. Porém, a necrópsia feita no CERVAS (Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens) evidenciou aspetos associados a sintomas neurológicos habitualmente causados por envenenamento, como uma torção do pescoço a mais de 360⁰, mas também lesões compatíveis com tiro. O cadáver foi enviado para análises adicionais, incluindo toxicológicas, que poderão trazer alguma clarificação quanto ao destino desta ave.

 

Mirante: abatido a tiro com um ano de vida

O Mirante era um abutre-preto, macho, que nasceu na Herdade da Contenda em 2023. Viveu o seu primeiro ano de vida principalmente no noroeste da Andaluzia, tendo realizado ainda alguns voos de dispersão pelo Alentejo, ao longo da fronteira com Espanha até ao Douro Internacional, e em território espanhol. No início de setembro de 2024 foi detetada a sua imobilidade abrupta em Cumbres de San Bartolomé, Huelva. Foi pedida assistência à Junta de Andaluzia, que, juntamente com técnicos da LPN (Liga para a Protecção da Natureza), detetou o cadáver. Acionados os meios legais, a necrópsia decorreu no CAD (Centro de Análisis y Diagnóstico de la Fauna Silvestre), onde se confirmou a morte por tiro, enquanto a ave voava. Este diagnóstico é reforçado pelos dados do emissor GPS/GSM, que demonstra uma drástica e instantânea perda de altitude, enquanto a ave voava.

 

Bumblefoot: uma morte adolescente

Em 2021, deu entrada no LxCRAS (Centro de Recuperação de Animais Silvestres de Lisboa) um jovem abutre-preto, cria desse ano, que foi capturado em Coruche, bastante débil. Bumblefoot, assim viria a ser batizado, esteve em recuperação até dezembro desse ano, tendo sido libertado na Herdade da Contenda, no Alentejo. Desde então, nunca saiu da Península Ibérica e vivia principalmente na Andaluzia. A dias de completar o terceiro aniversário da sua libertação, morreu inesperadamente. O cadáver foi detetado por Alfonso Godino, colaborador do projeto LIFE Aegypius Return, com recurso a um drone, e recolhido pelas autoridades espanholas. A necrópsia foi realizada na AMUS (Acción por el Mundo Salvaje), e a investigação encontra-se em segredo de justiça.

 

Deteção do cadáver do abutre-preto Bumblefoot.

 

A morte de todos estes abutres antes de atingirem a idade reprodutora – o que nesta espécie acontece pelos quatro a seis anos de vida – representa não só a sua perda individual, como a impossibilidade de contribuírem para recuperação da espécie, deixando descendentes.

 

Conservação sem fronteiras

Como se exemplificou nos casos apresentados, a conservação da natureza é um trabalho que não conhece fronteiras administrativas ou de competências. A cooperação internacional e intersetorial é fundamental para recolher informação, processá-la, e desenhar e implementar medidas para compreender e combater as ameaças à vida selvagem.

 

Os parceiros do projeto LIFE Aegypius Return agradecem a todas as pessoas e entidades que diariamente colaboram para conservação do abutre-preto. Juntos, tentamos dar um sentido útil à morte de todas estas aves, para traçar o ainda longo caminho que nos espera para garantir um futuro sustentável para a espécie.

 

Mais informação

Sobre o LIFE Aegypius Return

Abutre-preto aumenta para mais de 108 casais nidificantes em Portugal

Sobre o abutre-preto