Este verão, duas crias foram resgatadas pelas equipas do projeto LIFE Aegypius Return, graças aos transmissores GPS/GSM. Conheça as suas histórias.

 

Medronho, a cria que voou cedo demais

Na Herdade da Contenda, nesta época de reprodução foram marcadas três crias de abutre-preto, entretanto batizadas de Medronho, Touril e Arroio. As crias são marcadas, aproximadamente, entre 80 e 90 dias após a eclosão, garantindo que já têm porte para receber o emissor, mas também que não têm ainda o ímpeto de saltar do ninho com a aproximação da equipa de marcação. Se tudo correr bem, as crias de abutre-preto começam a fazer os primeiros voos e a sair do ninho com aproximadamente 110 a 120 dias de idade. Assim, após a marcação no ninho, a vigilância de campo passa a ser complementada com a monitorização contínua da informação transmitida pelos emissores GPS/GSM, uma vez que aquela fase é de grande sensibilidade e crucial para determinar a sobrevivência de cada indivíduo.

 

No dia 21 de julho, o emissor da cria Medronho – um macho que então teria cerca de 95 dias de idade – registou movimentos a cerca de 50 metros do ninho, o que de imediato chamou a atenção de Eduardo Santos, técnico da Liga para a Protecção da Natureza (LPN). Uma análise mais detalhada dos dados mostrou que a cria se havia atirado para o chão, ou caído do ninho, ao final da manhã. A queda podia ter causado ferimentos, e/ou deixá-la sujeita a predadores, face à sua tenra idade e incapacidade de se defender. Assim, foi prontamente organizada uma equipa de resgate da LPN, que incluiu dois médicos veterinários. Chegados ao local, a cria foi observada e evidenciava dificuldades em manter o pescoço em posição normal, sendo necessários exames de imagiologia. Foi hidratada e sujeita aos cuidados necessários para garantir o seu bem-estar previamente ao seu transporte até ao Centro de Recuperação de Animais Silvestres de Lisboa (LxCRAS). Já no LxCRAS, o raio-X não revelou evidências de fratura, luxação ou qualquer outro problema de maior gravidade, pelo que recebeu tratamento anti-inflamatório, alimento e hidratação. No dia 26 de julho a cria recebeu alta e foi transportada de volta para o ninho, na esperança de uma “readoção” pelos progenitores. Na altura deixou-se também algum alimento no ninho.

Eduardo Santos/LPN
Eduardo Santos/LPN
LPN
Eduardo Santos/LPN

Sete dias de sol abrasador

A experiência com outros casos similares demonstra que, naquela idade tão vulnerável, a readoção, pelos progenitores, da cria recolocada no ninho é fundamental para a sua sobrevivência. Os progenitores alimentam e hidratam a cria, mas também a protegem da exposição prolongada ao Sol, ao fazer-lhe sombra com o seu corpo. O jovem Medronho foi devolvido ao ninho, que é totalmente exposto ao Sol, quando o Alentejo registava temperaturas acima de 40⁰C durante o dia, o que poderia levar a ave a saltar novamente do ninho. A fragilidade da situação exigia então um dispositivo de vigilância constante. Foram organizados turnos de vigilância permanente das 6h30 às 21h00, entre equipas da LPN, da Herdade da Contenda E.M., e do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que, sob a canícula alentejana, estoicamente vigiaram a cria, os seus comportamentos e todos os movimentos à sua volta. Ao terceiro dia de vigilância, ainda sem sinais dos progenitores, foi necessário repor alimento no ninho, o que requereu novamente a escalada do pinheiro-bravo onde este está construído. Ao quinto dia de vigilância (dia em que a cria Touril começou a voar), um abutre-preto aproximou-se do Medronho e interagiu com ele, dando alguns indícios de comportamento compatíveis com os de um progenitor. Mas só ao sétimo dia (2 de agosto) foi possível confirmar a readoção, com um adulto a interagir ativamente com a cria e, finalmente, a alimentá-la. O Medronho foi efetivamente readotado com sucesso e concluiu o seu desenvolvimento sob os cuidados parentais, tendo finalmente começado a voar no dia 22 de agosto, com pouco mais de 120 dias de idade, precisamente um mês após o seu resgate.

 

Resgate no Tejo Internacional

No Tejo Internacional, este ano foram marcadas sete crias de abutre-preto. O emissor do jovem macho que recebeu a anilha 5E, registou movimentos fora do ninho no dia 5 de agosto, quando a ave deveria ter apenas cerca de 107 dias de idade. Receando uma queda do ninho similar à descrita para o Medronho, Paulo Monteiro, técnico da SPEA, dirigiu-se ao local e, à distância, confirmou que a cria não estava no ninho, mas não a detetou no solo. De imediato deslocou-se à zona do ninho e, numa aproximação cuidadosa, conseguiu ver a cria à sombra, entre azinheiras. Com o auxílio de Vigilantes da Natureza do ICNF – e de acordo com o Protocolo de Resgate, Manuseamento e Transporte de Abutres-Pretos –, a ave foi recolhida e transportada para o Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens (CERAS), gerido pela Quercus, em Castelo Branco. Aí, a cria foi observada, alimentada, hidratada, e mantida sob observação até ao dia seguinte. Sem qualquer evidência de trauma ou lesão, a ave teve alta e foi devolvida ao ninho no dia seguinte, tendo-se iniciado de imediato a vigilância que decorreu entre as 12h30 e as 21h00. No dia 7 de agosto, Paulo Monteiro reiniciou a vigilância pelas 6h10, mas esta acabou por ser curta, uma vez que a ave foi readotada nesse mesmo dia por volta das 10h00, tendo sido alimentada por um dos progenitores que permaneceu no ninho quase uma hora.

 

Alguns dias depois, o emissor GPS/GSM foi novamente essencial para providenciar informação importante, embora, desta vez, nada animadora. Na sequência do controlo diário que é efetuado, verificou-se que, por volta da 1h da madrugada do dia 11 de agosto, a ave cessou os movimentos. A observação do ninho à distância que se seguiu revelou que a ave tinha caído do ninho e, aparentemente, estava morta no solo. A visita ao ninho confirmou as suspeitas e o corpo foi recuperado e entregue no CERAS para análise. A necrópsia revelou que a morte se deveu a uma hemorragia interna causada por traumatismo, muito provavelmente devido a esta segunda queda do ninho. Foram recolhidas amostras que aguardam avaliação toxicológica e histopatológica para, ainda assim, despistar outras causas de morte.

Paulo Monteiro/SPEA
Paulo Monteiro/SPEA

Conservação com pessoas e tecnologia

O uso de tecnologia como os emissores GPS/GSM é atualmente um poderoso aliado na conservação da natureza, ao fornecer informação crucial e permitir identificar e mitigar fatores de ameaça, mas também episódios de mortalidade. Em projetos de conservação, e principalmente nos que envolvem espécies com elevado risco de extinção, como o abutre-preto, a morte de cada indivíduo tem um peso considerável na recuperação das populações. Todavia, acaba por ser também uma forma de obter mais conhecimento sobre as ameaças que pairam sobre a espécie e de estarmos mais preparados para situações similares que venham a ocorrer.

 

As histórias do Medronho e do 5E mostram-nos ainda que a conservação, no terreno, só é possível graças à enorme dedicação e ao comprometimento dos conservacionistas, veterinários, e outros técnicos, potenciada pela estreita colaboração entre múltiplas entidades. Deixamos um enorme obrigado e o reconhecimento do mérito de todas as pessoas e instituições envolvidas.

 

Aconselhamento: Carlos Pacheco, Javier de la Puente, José Pedro Tavares

Entidades e pessoas envolvidas:

LPN – Eduardo Santos, David Delgado Rodríguez, Patrícia Couto (voluntária)

LxCRAS – Verónica Bogalho, Érica Brazio e Filipa Lopes

Herdade da Contenda – Pedro Rocha

ICNF – João Santos, João Pepe, André Trindade, Agostinho Tomás, Ângelo Nunes, António Marques e Dinis Monteiro

SPEA – Paulo Monteiro

CERAS/Quercus – Mariana Ribeiro, Inês Pereira, Beatriz Calado, Samuel Infante, Bruna Chaves, Inês Gonçalves, Sofia Ferraz e Gonçalo Gil.

 

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