Num contexto em que a natureza dos delitos e a natureza do sistema penal tornam difícil combater o crime, o papel das ONG e dos cidadãos ganha importância redobrada, dizem os especialistas.
Milhares de aves selvagens são capturadas todos os anos em Portugal. Apesar de esta prática ser ilegal, estes crimes passam frequentemente impunes, em parte porque possuir armadilhas não é crime. A SPEA está a bater-se para que a lei seja alterada, passando a proibir a posse, venda e fabrico das armadilhas e outros meios de captura de aves, porque essa alteração tornaria mais fácil trazer os perpetradores à justiça. Se os meios de captura forem proibidos, as denúncias de cidadãos que encontrem costelos, esparrelas ou redes tornar-se-ão numa componente importante do combate a estes crimes.
Este peso da ação de cidadãos preocupados é visto por vezes como um sintoma de falta de vontade política ou das autoridades, mas segundo especialistas em criminologia a realidade é mais complexa, e prende-se com a própria natureza deste tipo de delito – e do sistema penal.
“Neste momento, os crimes contra o ambiente são crimes de prevenção prioritária,” frisa Rita Faria, Professora de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. “Os crimes contra o ambiente estão, neste ponto, ao mesmo nível que os crimes de terrorismo em Portugal.” Doutorada em Criminologia, Rita Faria faz questão de salientar que a legislação portuguesa, que transpõe em muitos casos diretivas europeias, é bastante completa no que toca aos danos contra o ambiente. O problema, refere, é que a preocupação com o ambiente, e a sua inclusão na lei, são relativamente recentes.
Na prática, o sistema de justiça criminal – não só em Portugal como na maioria dos países – foi criado para outro tipo de delitos. “O sistema de justiça criminal depende muito do papel da vítima, de alguém que se sente lesado e vai denunciar. Neste tipo de crimes, contra o ambiente, as coisas não tomam a mesma figura que nos crimes convencionais,” diz Rita Faria.

Em crimes contra o ambiente, bem como noutros crimes como o branqueamento de capitais, as consequências podem ser tremendas, mas muitas vezes não têm uma vítima identificável. É aqui que a sociedade civil, e em particular as Organizações Não-Governamentais (ONG) como a SPEA, podem ter um papel importante, dizem os criminólogos.
Trabalhando com os cidadãos, as ONG podem criar sistemas que permitam detetar e denunciar delitos contra o ambiente, tomando esse papel de representação das vítimas. Rita Faria dá o exemplo de uma aplicação de telemóvel que permite, com um par de cliques, denunciar a venda de espécies ameaçadas em mercados asiáticos.
Este tipo de iniciativa responde a uma outra complicação posta pelos danos contra o ambiente: embora haja situações excecionais como grandes derrames de petróleo, a maior parte dos casos de danos contra o ambiente são incidentes dispersos, em que o dano é causado pela repetição de pequenas ações ao longo de amplos períodos de tempo. Detetar cada uma dessas ações requer recursos e uma presença no terreno que as autoridades dificilmente conseguem ter. Iniciativas como esta app são uma forma de ter mais olhos no terreno. Ainda assim, Rita Faria ressalva que iniciativas como esta são muito recentes, pelo que ainda não há dados sobre a sua eficácia.
Detetar e denunciar casos de danos contra o ambiente é imprescindível, mas não chega. É preciso que os casos sejam investigados, e que os culpados sejam punidos. O que nem sempre é fácil.
Recursos limitantes
Veja-se o caso do uso ilegal de veneno. Geralmente a suspeita surge por se encontrar um animal morto. Para investigar um caso destes, será preciso fazer uma necrópsia (o equivalente a uma autópsia, mas num animal), recolher material para análises em laboratório, e procurar pistas no terreno. Cada um destes passos requer equipas especializadas, e muitos requerem transferência de materiais e informação de forma segura e fidedigna. No projeto Life Rupis, que coordenamos, desenvolveram-se protocolos e guias de procedimentos para a recolha e análise de cadáveres de aves – geralmente abutres e outras aves de rapina – suspeitas de envenenamento.
Para melhorar os recursos no terreno, o projeto conseguiu financiar e criar brigadas de deteção de venenos, com cães treinados especificamente para o efeito. “Um ponto muito importante no Life Rupis é que a GNR faz parte integrante do projeto, é um dos parceiros, portanto estão diretamente envolvidos. Isso permite juntar o conhecimento e a experiência dos conservacionistas e das forças policiais para diminuir esta ameaça”, diz Joaquim Teodósio, Coordenador do nosso Departamento de Conservação Terrestre e do Life Rupis. Com mais recursos para detetar e investigar estas situações, aumenta a capacidade de descobrir quem as causou. Mas o processo judicial não acaba aqui, e as complexidades de combater os delitos contra a natureza também não.
“O nosso código penal tem o crime de danos contra a natureza, e existe muita legislação para além do código penal onde se prevêem sanções para quem prejudicar o ambiente, de variadíssimas formas”, diz Rita Faria. Mas aplicar essas leis nem sempre é fácil.

“Temos agentes especializados no SEPNA [Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente da GNR], mas muitos dos outros intervenientes, como os
magistrados, têm uma formação mais geral, que dá menos atenção a estas situações do que a outros tipos de crime”, diz Joaquim Teodósio. Também esta faceta não é exclusiva a Portugal, e também aqui as ONG de ambiente podem ter um papel importante.
David de la Bodega, da Sociedade Espanhola de Ornitologia (SEO), é coordenador do projeto Life Nature Guardians, que visa precisamente melhorar a eficácia do combate aos delitos contra o ambiente, e cuja ação em Portugal está a cargo da SPEA. Num debate sobre uso ilegal de veneno, que promovemos juntamente com a LPN e o Grupo Lobo em 2019, David de la Bodega afirmou que, segundo a experiência da SEO nos últimos 20 anos, os processos judiciais em que não esteja envolvida uma ONG ambiental normalmente fracassam, i.e. acabam sem condenações.
Nem tudo é preto e branco
Nalguns casos, até os culpados podem ser difíceis de apontar. “Apesar de estar previsto na lei que as pessoas coletivas, as empresas, podem ser consideradas culpadas de crimes, é muito difícil atribuir a culpa. Normalmente tenta-se chegar a uma pessoa individual que tenha tomado a decisão, e isso muitas vezes não sucede nestes danos contra a natureza. Não há aquela figura do psicopata assassino, que é claramente culpado,” diz Rita Faria, acrescentando que nos casos de danos contra o ambiente, muitas vezes as pessoas sentem uma certa ambivalência quanto a quem os comete. “Uma empresa que polua também dá emprego a muita gente, também paga impostos. Ou uma pessoa que tem uma atividade muito mal remunerada, como a pesca, e que tenta complementar essa atividade usando meios proibidos, ou pescando quando não pode… há muitas vezes alguma ambivalência nestas situações.”
Neste aspeto, criminólogos como Rita Faria argumentam que evitar os danos contra o ambiente passa por conhecer a fundo o contexto social: é preciso perceber as condicionantes que levam a que as pessoas tenham estas práticas. Só aí se poderão encontrar soluções eficazes. Com esse intuito, Rita Faria está a trabalhar com o nosso Departamento de Conservação Marinha para estudar práticas de pesca ilegal na região de Peniche, uma vez que há indícios de que dizimam muitas aves marinhas, que nelas são capturadas acidentalmente.
Por vezes, olhar para o panorama geral também permite enquadrar as soluções de outra forma, não como sanções mas como medidas de proteção dos ecossistemas. Em Espanha, quando há um caso de envenenamento numa coutada de caça, a coutada é temporariamente fechada, independentemente de qualquer apuramento de culpas. Isto porque o fecho não é uma penalização, mas sim uma medida para permitir a recuperação daquele ecossistema, disse David de la Bodega.
Para aumentar a eficácia do combate aos danos contra o ambiente, vai ser preciso agir em muitas frentes. A boa notícia é que todos juntos, ONG, cidadãos, cientistas e autoridades, temos o que é preciso para lá chegar. Vamos pôr mãos à obra, porque no fim de contas, quando o ambiente é danificado, a vítima somos todos nós.
Este artigo foi publicado originalmente na revista Pardela nº 58: Primavera/Verão 2019.