Rita Martins Técnica de Intervenção e Políticas Ambientais 351 964 656 033 rita.martins@lpn.pt   Julieta Costa Coordenadora do Departamento de Conservação - área terrestre SPEA julieta.costa@spea.pt

Em causa está a inutilidade deste decreto-lei para o alegado objetivo de enfrentar a crise habitacional, e os graves impactes sobre as áreas classificadas pelos seus valores naturais, a provável arbitrariedade e descontrolo na expansão urbana, com custos acrescidos, para zonas que colocam em risco pessoas, bens e ecossistemas num contexto de agravamento dos efeitos das alterações climáticas.

 

Lisboa, 23 de janeiro de 2025 – Nas últimas semanas foram emitidos vários pareceres a refutar as justificações por trás do Decreto-Lei (DL) nº 117/2024 que veio alterar o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), que rege a implementação da Lei de Bases dos solos. Em uníssono, o Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, urbanistas, arquitetos paisagistas e inúmeros especialistas demonstraram a ausência de fundamentos que justifiquem este diploma. A eles juntam-se as Organizações Não-Governamentais de Ambiente (ONGA), após uma análise cuidada deste DL, que não se encontra suportado em estudos, dados ou fundamentação científica. As ONGA alertam que, efetivando-se, esta alteração ao RJIGT resultará em múltiplos danos e riscos, nos domínios social, ecológico e económico. Este diploma (1) não resolve o problema da habitação, dado as causas desse problema serem outras, (2) traz risco de degradação da Rede Natura 2000, da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e da Reserva Ecológica Nacional (REN), e (3) impõe riscos acrescidos para pessoas e bens. Ao criar nos mercados fundiários expectativas de valorização súbita dos terrenos por via de loteamentos avulsos, este decreto-lei irá agravar os custos da habitação e das infraestruturas urbanas, ao mesmo tempo que prejudica a agricultura, a silvicultura e a conservação da Natureza.

 

Diploma não resolve a crise da habitação e agrava custos

O “entorse” [sic] ao ordenamento do território promulgado pelo Senhor Presidente da República afigura-se, na verdade, no anulamento dos instrumentos de gestão territorial. A análise económico-financeira e a interpretação dos Planos Diretores Municipais mostram liminarmente que esta alteração ao RJIGT não irá ter qualquer efeito na resolução da crise da habitação, desde logo por não existir falta de solos urbanos – a proporção de solo urbano não artificializado é superior a 50% e, pelo menos, 12% do total de habitações encontram-se devolutas. A aparente escassez de oferta no mercado de solos urbanos para construção resulta de fenómenos especulativos, propiciados por falhas na tributação do solo expectante, pelo que a solução para este problema é de natureza fiscal e dispensa a reclassificação de solos rústicos para urbanos. A mesma falha tributária explica o grande número de habitações devolutas. Mas, enquanto sobre esta matéria vários peritos se têm pronunciado, reina um silêncio ensurdecedor sobre os riscos que as medidas previstas trazem para o nosso património natural, para as pessoas e a sua segurança.

 

A alteração do RJIGT facilita a dispersão de habitações afastadas dos centros urbanos, com custos evidentes para o ambiente e para os contribuintes, que irão suportar nesta urbanização tendencialmente dispersa duas a sete vezes mais com a infraestrutura necessária (fornecimento de água e energia, saneamento, acessos, transportes e outros serviços públicos). A dispersão urbana agrava o recurso ao transporte individual com os inerentes custos e poluição, num momento em que o setor dos transportes representa mais de 30% das emissões de gases com efeito de estufa no país.

 

Riscos de degradação das áreas classificadas

Com esta alteração ao RJIGT torna-se possível lotear em certas parcelas do Sistema Nacional de Áreas Classificadas. Embora o diploma mencione que a “reclassificação para solo urbano prevista […] não pode abranger áreas integradas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas”, a frase termina com a alarmante redação “excluindo as áreas não abrangidas por regime de proteção”. Este “detalhe” servirá objetivamente para facilitar a construção desenfreada em áreas de elevada sensibilidade ecológica, nomeadamente na Rede Natura 2000 e na REN, que servem para proteger espécies, habitats e pessoas. Esta faculdade passará a aplicar-se a todas as áreas da Rede Natura 2000 que, de acordo com os seus planos de gestão, não estejam explicitamente abrangidas por regime de proteção de habitats prioritários, bem como nos troços da Rede Nacional de Áreas Protegidas que, de acordo com os seus Programas Especiais, não estejam sob regime de proteção.

 

Para ilustrar a debilidade das políticas de conservação da natureza em Portugal, recordemos que foi publicado um único Programa Especial de Área Protegida (em 32) e um único Plano de Gestão de Zona Especial de Conservação da Rede Natura 2000 (em 63), num processo cujo atraso de vários anos conduziu a uma ação no Tribunal de Justiça da União Europeia e à ameaça de uma multa avultada ao Estado Português.

 

Acresce que este diploma vem colidir com os objetivos do recentemente aprovado Regulamento do Restauro da Natureza, ao nível da União Europeia.

 

 

Riscos para pessoas e bens

O impacto deste diploma estende-se às áreas da REN e da RAN, que saem comprometidas. Permitir construir casas nestas condições e nestes locais significa agravar o risco e a perigosidade dos incêndios rurais, das cheias (por força da impermeabilização desnecessária de novas áreas), de derrocadas e de outros fenómenos extremos intensificados pelo desordenamento do território e pelas alterações climáticas cuja frequência irá previsivelmente aumentar. Permitir construir sobre solos com capacidade agrícola significa obliterar a socioeconomia rural, à medida que se torna a agricultura e silvicultura proibitivas, e se põe em causa a nossa segurança alimentar num contexto de crescente instabilidade geopolítica e crise climática.

 

Todos estes riscos, a que custo? E para quem? Para todos nós.

 

A única solução para o DL 117/2024 é a sua revogação

Pelas consequências negativas para a preservação da natureza, floresta, agricultura, sem benefício algum para a habitação, juntando-se ao coro de vozes da sociedade civil, as organizações signatárias reclamam a revogação do diploma na Assembleia da República na próxima sexta-feira, 24 de janeiro, e irão solicitar ao Senhor Presidente da República uma audiência para discutir este assunto.

 

A solução para a crise da habitação terá, então, de passar por uma análise cuidada ao Ordenamento do Território e à aplicação de duas estratégias para promover a consolidação dos perímetros urbanos já existentes, ambas com resultados positivos nos países mais desenvolvidos que merecem ser tomados como exemplo a seguir: avocar à administração pública a prerrogativa de lotear, subtraindo-a aos particulares, e utilizar vigorosamente a tributação do património imobiliário de modo a incentivar o seu aproveitamento em tempo útil e a desencorajar atividades especulativas.

 

 

As Organizações Subscritoras:

  • AAMDA – Associação dos Amigos do Mindelo pela Defesa do Ambiente
  • AEPGA – Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino
  • Almargem – Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve
  • ANP | WWF – Associação Natureza Portugal em associação com WWF
  • A ROCHA
  • Associação ALDEIA
  • Associação Evoluir Oeiras
  • AVE – Associação Vimaranense para a Ecologia
  • Campo Aberto – Associação de Defesa do Ambiente
  • CHANGE – Instituto para as Alterações Globais e Sustentabilidade
  • CE3C/CHANGE
  • CPADA – Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente
  • FAPAS – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade
  • GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente
  • LPN – Liga para a Protecção da Natureza
  • Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural
  • Sociedade Portuguesa de Botânica
  • SPEA – Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves
  • SPECO – Sociedade Portuguesa de Ecologia
  • Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza
  • ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável