O decreto-lei recentemente publicado, que permite a construção em solos rústicos, coloca em causa o ordenamento territorial do país, contraria as diretivas europeias e põe em risco a sustentabilidade, além de ameaçar espécies, habitats e ecossistemas que deveriam ser protegidos.

 

“Os solos rústicos são imprescindíveis para nos garantir a segurança alimentar e desempenham um papel importante na retenção de carbono e prevenção de inundações e outras catástrofes – em vez de os destruir, os nossos governantes deveriam estar a protegê-los e a restaurá-los nos locais onde estão degradados” diz Julieta Costa, a nossa coordenadora de conservação terrestre.

 

A novíssima legislação – Decreto-Lei nº 117/2024 de 30 de dezembro, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, vem, sob o pretexto de remediar o problema da falta de habitação acessível, desregulamentar as condicionantes à construção em solos rústicos.

 

A lei dos solos compromete a segurança alimentar

A consequência mais óbvia da fácil conversão dos solos rústicos em solos urbanizáveis é a perda, fragmentação e degradação dos solos agrícolas. Numa altura em que todos os países europeus procuram garantir e fortalecer as bases da sua segurança alimentar e energética, para conseguirem lidar com a imprevisibilidade política e recentes conflitos no continente Europeu, é estranho que se coloque em causa as bases do nosso ordenamento territorial. Os riscos desta nova lei vão para além da perda de área potencialmente utilizável para atividades agrícolas ou florestais. Com a especulação imobiliária, os solos rústicos de certas regiões podem simplesmente deixar de ser utilizados para fins agrícolas, pastoris ou florestais devido ao seu preço inflacionado colocar em causa a viabilidade dessas atividades produtivas. Deveríamos estar a planear e gerir o território para garantir a manutenção dos solos produtivos, uma boa gestão dos aquíferos, a promover práticas agrícolas sustentáveis e a compatibilizar as atividades agro-pastoris com a conservação da natureza. Todos dependemos deste território não urbanizado e a sua gestão deve ser cuidadosamente planeada, para não comprometer a nossa segurança alimentar e a das gerações futuras.

 

 

A lei dos solos aumenta o risco de catástrofes

Ao cobrir os solos com prédios, estradas e outras construções, estamos essencialmente a cobrir o planeta com uma camada impermeável, criando uma barreira ao ciclo da água que tem consequências desastrosas. Quando chove, a água fica retida à superfície, escorrendo pelas nossas construções em inundações cada vez mais frequentes. Mas o impacto não fica por aí. Toda essa água que corre pelas ruas, causando derrocadas e destruindo vidas, é água que não se infiltra nos solos, não repõe lençóis freáticos, e fica a fazer falta aos nossos campos, cada vez mais assolados pela seca. Com os efeitos das alterações climáticas, este cenário repete-se cada vez com mais frequência.

 

Além deste importante papel no ciclo da água, os solos rústicos saudáveis ajudam diretamente a combater as alterações climáticas: o solo tem maior capacidade para reter carbono do que a vegetação e a atmosfera juntas.

 

O nosso futuro assenta nos solos. Destruí-los vai sair-nos caro, por muito tempo. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), pode demorar 1000 anos a produzir 2-3cm de solo.

 

Reconhecendo o papel crucial dos solos e o impacto devastador da sua destruição, a União Europeia tem vindo a tomar passos para garantir que os Estados Membros protegem aquela que é a base – literal e figurativa – da sua existência. A Comissão Europeia apresentou em 2021 a Estratégia de Proteção do Solo da UE, e para assegurar a sua implementação propôs a Diretiva Monitorização do Solo, cujo foco é precisamente o combate à impermeabilização e à destruição dos solos. Em setembro passado, o Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura da UE (“Strategic Dialog on The Future of EU Agriculture”) concluiu que a Comissão Europeia deve estabelecer uma meta juridicamente vinculativa de “zero tomada de terra até 2050”. Paralelamente, foi aprovada em 2024 a Lei de Restauro da Natureza, segundo a qual os Estados Membros a UE devem proteger 30% do seu território até 2030. Portugal não pode descurar estes e outros compromissos — como a Convenção da Diversidade Biológica, a Diretiva Habitats e a Convenção de Berna – não só enquanto obrigações legais mas sobretudo como pilares indispensáveis que são para assegurar a sustentabilidade do país, da Europa e do planeta para gerações futuras.

 

A lei dos solos põe em risco áreas supostamente protegidas

Esta lei põe ainda em risco áreas que deveriam estar protegidas por lei. Apesar das promessas do governo de que a construção não poderá ocorrer em zonas de Reserva Ecológica Nacional (REN), o texto da lei não refere as chamadas áreas de instabilidade de vertentes e para as Áreas Estratégicas de Infiltração, Proteção e Recarga de aquíferos. Assim, aparentemente nada impedirá a construção nas cabeceiras de montes – áreas por excelência de infiltração, onde a cobertura por vegetação é essencial para captar, reter e absorver a água das chuvas e nevoeiros. Ao permitir a construção nessas áreas, vai-se destruir essa vegetação e perder a proteção natural contra derrocadas.

 

Igualmente preocupante é o facto de a lei não acautelar a proteção de áreas da Rede Natura 2000 como as Zonas de Proteção Especial e as Zonas Especiais de Conservação. De que serve a legislação europeia se com esta lei a construção nessas áreas vai ficar ao critério dos municípios, com base apenas nas “necessidades” urbanísticas, e sem ter em conta o impacto nas espécies e habitats que supostamente protegem?

 

Ao descurar as obrigações em matéria de proteção da biodiversidade, com esta lei o governo vem agravar a situação já preocupante de muitas espécies, que não só têm de enfrentar um cenário difícil de alterações climáticas como veem os seus habitats cada vez mais confinados.

 

Uma falsa solução

Permitir a construção em solos rústicos vai agravar as crises climática e da biodiversidade, e não irá resolver a crise da habitação. Por um lado, a crise na habitação verifica-se em municípios já fortemente urbanizados, onde os terrenos rústicos são escassos. Portanto permitir a urbanização de terrenos rústicos não resolve esse problema, apenas alimenta a especulação imobiliária noutros locais. Por outro lado, a verdade é que em Portugal não faltam habitações construídas (nem solos urbanizáveis), a questão é que muitas delas não estão disponíveis no mercado. Assim, a solução é privilegiar a reabilitação, reconstrução e renovação de infraestruturas degradadas ou desocupadas em espaços urbanos, e incentivar a disponibilização da habitação existente no mercado.

 

Por fim, é questionável que esta lei resulte efetivamente em maior disponibilidade de casas para quem mais precisa. Isto porque a lei introduz o novo conceito de alojamento de “custo moderado”, segundo o qual, na prática, as novas casas poderão teoricamente ser postas à venda por mais do dobro do preço de mercado.

 

Por estes motivos, na SPEA continuamos a considerar este decreto-lei um erro. Antes da sua publicação, expressámos a nossa posição juntamente com 15 outras organizações, numa carta aberta aos governantes, e iremos continuar a lutar contra esta perigosa falsa solução.

 

Mais informação

Carta Aberta: “Em defesa do solo do nosso país”